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Como desenvolver o raciocínio clínico?

Como desenvolver o raciocínio clínico?

10/MAI/2021

Carreira Médica

O raciocínio clínico é uma atividade cognitiva complexa, a partir da qual, diante de um problema clínico, o médico estabelece o diagnóstico e a melhor conduta frente ao caso . Esse processo cognitivo está intimamente relacionado com a habilidade do médico, sendo essa uma das maiores qualidades que o estudante de medicina deve obter e aperfeiçoar durante a graduação. 


Esse processo cognitivo é necessário em todos os níveis de complexidade, seja no âmbito privado ou público, no entanto, quando avaliamos o cenário da saúde no Brasil ele se torna ainda mais valioso, tendo em vista as dificuldades financeiras e a precariedade na disponibilidade de recursos enfrentadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que, segundo dados do Ministério da Saúde, atende mais de 70% da população brasileira. Nesse contexto, apesar da evolução no entendimento das bases fisiopatológicas das doenças e do enorme avanço das técnicas propedêuticas e terapêuticas, faz-se necessário maior empenho a fim de desenvolver a habilidade do raciocínio clínico e, com isso, não sobrecarregar o sistema de saúde, tanto financeiramente, como estruturalmente, com exames complementares dispensáveis, e muitas vezes, indisponíveis. 


Para a construção e o ensino do raciocínio clínico foram criadas algumas teorias, das quais se originaram as duas abordagens mais utilizadas atualmente: o raciocínio analítico e o raciocínio não analítico. O raciocínio analítico, útil em casos incomuns ou complexos, utiliza o método hipotético-dedutivo, no qual  o profissional, frente a um quadro clínico,  inicia a elaboração mental de inúmeras hipóteses diagnósticas e, com a coleta de novas informações, passa a aceitar ou rejeitar as hipóteses previamente estabelecidas com intuito de definir o diagnóstico mais provável.

 

Já o raciocínio não analítico, útil em casos mais comuns no cotidiano, determina que a repetida exposição a casos clínicos permite ao profissional a criação de esquemas mentais, chamados de scripts de doenças. Ou seja, esse raciocínio automático e, portanto, mais rápido, possibilita o reconhecimento do padrão frente a um quadro clínico análogo. Nesse sentido, a fim de construir e memorizar os próprios scripts, o estudante de medicina deve ser exposto, diversas vezes, a casos clínicos cotidianos.


Esses esquemas diagnósticos são amplamente dependentes de associações semiológicas, como sinais e sintomas, bem como a epidemiologia das diversas doenças no contexto social, cultural e econômico. Tal observação originou a “Teoria da Construção de Scripts de Doenças”, que determina três estágios durante a graduação e prática médica, pelos quais se adquire a habilidade de elaboração do raciocínio clínico e diagnóstico mais provável. 


O primeiro estágio dessa teoria, “Formação da rede de conhecimentos biomédicos”, representa o início da graduação, no qual os estudantes aprendem os conceitos biológicos sobre o funcionamento do organismo humano, bem como as bases fisiopatológicas das doenças, o que permite relacionar a etiologia as suas consequências. Na progressão do curso, com o estudo da semiologia, há o início do contato efetivo com os pacientes e, portanto, com a apresentação clínica de suas doenças, seus sinais e sintomas. No entanto, nessa fase o processo lógico é lentificado, uma vez que ainda não é possível associar a clínica do paciente a um determinado grupo de doenças. 


Com a maior exposição aos casos clínicos, o estudante adquire mais conhecimento e os organiza em padrões diagnósticos, progredindo para o segundo estágio, “Encapsulamento dos conhecimentos biomédicos". Com a finalidade de propiciar a evolução do processo cognitivo, o estudante deve ser incentivado a justificar os sinais e sintomas de acordo com a fisiopatologia de cada doença, assim, a relação entre apresentação clínica e bases fisiopatológicas começa a ser desenvolvida. 


O terceiro estágio, “Formação dos scripts de doenças”, é baseado na continuidade da prática clínica e a constante exposição aos casos clínicos. Nesse sentido, a organização do conhecimento se dá com a estruturação das doenças em modelos mentais, que serão refinados com a experiência profissional de cada estudante. 


No entanto, a utilização de estratégias para o desenvolvimento do raciocínio clínico não significa que sua aplicação seja genérica, uma vez que a apresentação clínica de uma mesma doença pode conter pequenas diferenças, e doenças distintas podem apresentar sinais e sintomas que se sobrepõem, dificultando o seu diagnóstico. Por isso, é fundamental individualizar cada situação e estar atento aos detalhes de cada caso. Estudos sugerem que o debate reflexivo entre os estudantes, ou seja, o estudo comparativo entre os casos clínicos, apontando os sinais, sintomas e exames complementares, é uma forma de discriminar as características de determinadas doenças e facilitar a escolha da melhor hipótese diagnóstica, frente aos diagnósticos diferenciais.  


Nesse contexto, com a vasta rede de conhecimento a qual o estudante é exposto, faz-se pertinente compreender os mecanismos cognitivos que envolvem o processamento de informações pelo cérebro. De acordo com esses estudos, a memória humana pode ser dividida em três sistemas, sendo eles a memória sensorial, memória de trabalho e memória a longo prazo. 

 

A memória sensorial é capaz de processar diversas informações, porém, devido a sua curta capacidade de retê-las é preciso que o estudante elabore, de maneira consciente, o que foi capturado pelos sentidos, isso é possível, por exemplo, ao discutir a fisiopatologia das doenças que são vistas e ouvidas. Ao exercitar essa atividade mental a informação é movida para a memória de trabalho.

 

Uma vez que a memória de trabalho tem capacidade limitada no armazenamento de informações, e nos casos clínicos, em geral, há grande volume de conteúdo, é necessário dispor as informações em grupos. Dessa forma, é possível relacionar as novas redes de informação ao conhecimento prévio disponível na memória de longo prazo.


Na memória de longo prazo ocorre a mudança persistente das sinapses, que promove o armazenamento dos esquemas cognitivos, entendidos como scripts. Para esse processamento  é fundamental a repetição do conteúdo com constante estimulação das redes neurais, com o intuito de tornar as informações automáticas e facilmente acessíveis durante um atendimento. 


Dessa forma, sabendo que a memória de trabalho possui capacidade restrita em lidar com novas informações, e tendo em vista que a medida que avançamos no curso somos expostos a um crescente número de conteúdos que se correlacionam, justifica-se a elaboração de esquemas relacionando os diversos elementos presentes nos casos clínicos. Assim, o conteúdo é armazenado na memória de longo prazo na forma de esquemas singulares, o que contribui para a automação das informações e direcionamento dessas para a memória de curto prazo, liberando espaço para aprendizado de novas informações e redução da carga cognitiva. Ademais, é importante que, mediante uma nova informação, seja estabelecida relações com conhecimentos prévios armazenados, flexibilizando a cognição. 


É importante perceber que na prática os raciocínios não analítico e analítico podem, e são, muitas vezes, utilizados simultaneamente na resolução dos casos, isso significa que um profissional experiente pode estabelecer um diagnóstico automaticamente, porém necessita gerar hipóteses e comprová-las. 


Portanto, podemos concluir que o desenvolvimento do raciocínio clínico pelos estudantes de medicina está intimamente relacionado à repetida exposição aos diversos casos clínicos durante a graduação e continua com a prática médica, isso levará a construção individual dos scripts ou esquemas mentais. Assim, o complexo processo de definir o diagnóstico, depende, não somente da aquisição de conhecimentos fisiológicos e patológicos, mas também da capacidade do estudante de construir uma rede de informações e acessá-las quando reconhecer a natureza do problema frente a um novo paciente.

Autoria: Comissão Ensino Médico: Gabriella Bartolomeu e Luana Ribeiro 


Referências:

 

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LANDIM, Daniel Moreira Paes; MORENO-NETO, José Luiz; SOARES, Jorgana Fernanda de Souza. Raciocínio clínico: percepções e práticas de estudantes de medicina. Revista Brasileira de Educação Médica, [S.L.], v. 45, n. 1, p. e032, 15 fev. 2021. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1981-5271v45.1-20200062. 

 

Ministério da Saúde. Diretrizes estratégicas. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/pacsaude/diretrizes.php. Acesso em: 16 abr. 21.

 

RÉA-NETO, A.. Raciocínio clínico -- o processo de decisão diagnóstica e terapêutica. Revista da Associação Médica Brasileira, [S.L.], v. 44, n. 4, p. 301-311, dez. 1998. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1590/s0104-42301998000400009.

 

Schmidt HG, Mamede S. How to improve the teaching of clinical reasoning: a narrative review and a proposal. Med Educ. 2015 Oct;49(10):961-73. doi: 10.1111/medu.12775. PMID: 26383068.