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O início da pesquisa clínica: Como ler artigos científicos?

O início da pesquisa clínica: Como ler artigos científicos?

20/MAI/2021

Carreira Médica

 O advento da internet e o constante fluxo de dados e de informações tornaram o cumprimento de parte do juramento de Hipócrates: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.”1 uma tarefa menos desafiadora para os profissionais medicina. Em paralelo à democratização do acesso ao conteúdo científico gerada pelas bases de dados, pelas revistas científicas e pelas próprias redes sociais e blogs, o caminho a ser percorrido agora é ser capaz de selecionar informações de qualidade baseadas em evidências científicas consistentes. Isso se torna de grande relevância sobretudo na hora de definir a abordagem terapêutica aos nossos pacientes, bem como para estabelecer ações de prevenção e promoção da saúde. Nesse contexto, assume grande importância a leitura crítica e criteriosa de artigos científicos, na busca de evidências sólidas e consistentes.


Por onde começar? A leitura de um artigo científico é um processo ativo, portanto é preciso avaliar inicialmente o propósito de realizar tal leitura. Nesse sentido, o primeiro questionamento a ser levantado acerca do trabalho é: Qual é a questão a ser respondida com este estudo?2 Ao elaborar esse questionamento, é importante que deixe claro os quais os componentes da sigla PPR3: o problema, qual o questionamento a ser respondido; o fator de predição, ou seja os envolvidos na variação daquele problema, um tratamento, um teste, um método de estudo; e o resultado, ou seja, os desfechos que você espera encontrar na conclusão daquela leitura. Definido isso, é hora de comparar se o conteúdo daquele artigo é de fato relevante para seu estudo e se ele possui a qualidade suficiente para que seja uma informação capaz de contribuir para o conhecimento científico. 


Assim como a capacidade de ler artigos é relevante, também devemos saber desconsiderar textos de baixa qualidade e que possuem muitos vieses. Muito pouco da literatura científica disponível repercutirá em mudanças na prática clínica, na qualidade de vida do seu paciente ou do grupo envolvido na questão a ser respondida. Diversos aspectos fazem com que um artigo não seja adequado para tais finalidades.  

 

Inicialmente, é importante considerar o local de publicação e os autores do artigo como algo relevante. Bons periódicos passam por um rigoroso processo de revisão por pares antes da publicação do artigo científico.2 A qualidade metodológica de um artigo pode ser avaliada, por exemplo, por meio dos passos do “User’s guides to the medical literature”. No entanto, trata-se de tema muito extenso para ser abordado, de forma completa, neste texto.4 Alguns são os motivos para que um artigo seja rejeitado, por exemplo: o estudo não é original, não testa a hipótese do autor, usa um delineamento de pesquisa diferente do indicado, o tamanho da amostra não é relevante o suficiente, a análise estatística está incorreta, e, até mesmo, a existência de conflitos de interesses entre o autor e a indústria farmacêutica que produz o tratamento. 


Nesse ponto, é importante ressaltar um assunto importante: delineamentos de estudo. Determinadas estruturas metodológicas são as mais indicadas para determinadas perguntas clínicas. Se um estudo quer avaliar os efeitos de um novo tratamento em um grupo de pacientes com a doença X, o delineamento ideal é um ensaio clínico randomizado com duplo mascaramento. A randomização e o duplo mascaramento são responsáveis por reduzir ao máximo os principais vieses relacionados a um novo tratamento, o que não aconteceria em um estudo observacional, por exemplo. Para responder questões relacionadas a fatores de risco, para a progressão da doença Y, um estudo observacional já seria válido. Poderia ser realizada a comparação entre os expostos e os não expostos àquele fator de risco e os variados desfechos obtidos.4 Considerando a complexidade deste tema recomendamos a leitura atenta do “User’s guides to the medical literature”, que ajudará na compreensão das utilizações adequadas de cada tipo de estudo.


Após realizadas essas avaliações preliminares e identificada a real necessidade de analisar um artigo científico, devemos utilizar estratégias específicas de leitura para a conclusão desse objetivo. A partir daqui, adotamos como técnica de leitura do artigo um infográfico publicado pela editora de periódicos científicos Elsevier para nortear nossos passos.5 


Título e resumo fornecem informações importantes no momento de selecionar um artigo sobre um tema de interesse. Ambos têm por finalidade sintetizar o estudo. Expõem a população avaliada, intervenção ou observação feita pelos autores, grupo utilizado como controle e desfechos avaliados. Além das características inerentes do estudo, informações como a data da publicação, fator de impacto da revista em que foi publicado, autores e instituições envolvidos darão suporte para avaliação da relevância do estudo. Após a seleção do artigo a ser lido é recomendada uma leitura rápida do artigo como um todo (em inglês chamado de Skimming), tomando nota somente do assunto geral do texto, palavras-chave e das figuras/tabelas do artigo⁶. Tal processo tem por objetivo compreender o artigo como um todo, facilitando o entendimento futuro das partes. 


Após essa breve leitura, o leitor prosseguirá com uma segunda leitura mais detalhada das partes do artigo⁷. Iniciando pela introdução será possível compreender o questionamento principal do estudo e quais estratégias foram traçadas inicialmente pelos pesquisadores. A partir do background, a atenção deverá ser redobrada caso o artigo seja o primeiro lido acerca do tema, pois nele haverá a contextualização do que é conhecido sobre o tema e quais perguntas permanecem sem respostas. Na seção de materiais e métodos caberá uma avaliação formal se o tamanho amostral, desenho de estudo e princípios éticos foram contemplados adequadamente. 


Na seção dos resultados, caberá ao leitor elaborar uma conclusão própria a partir dos dados do estudo. Trata-se um exercício para adquirir senso crítico ao analisar a conclusão do artigo, além de contribuir na formação científica do leitor⁸.  Tal conclusão deverá ser embasada em uma postura crítica tanto da significância encontrada e dos erros sistemáticos do estudo, quanto avaliar se o estudo conseguiu responder ao questionamento inicial.


Durante a leitura da discussão e conclusão do artigo, os autores farão a avaliação completa do estudo, cabendo a eles elencar os pontos positivos e negativos, fragilidades e quais perguntas foram criadas ou que ainda permanecem sem as suas devidas respostas. Recomenda-se finalmente realizar a leitura do resumo do artigo, de forma a evitar um possível enviesamento durante a leitura do artigo pela sumarização criada pelos autores⁹.


Após a leitura do artigo, é recomendável também ao leitor buscar a opinião de outros pesquisadores sobre o estudo, analisar os artigos referenciados e buscar por outros artigos similares como estratégias para o pleno domínio do tema.


A fim de otimizar a leitura, algumas observações devem ser tomadas. Inicialmente, o tempo gasto para a realização dos passos citados no texto será extenso, contudo a prática e a experiência trarão estratégias individuais a fim de poupar o tempo do leitor¹⁰. Durante a leitura é recomendável fazer anotações e marcações no texto para melhor compreensão do artigo. Finalmente, a busca por conhecimentos gerais em estatística, epidemiologia, medicina baseada em evidências e língua inglesa será fundamental na leitura de qualquer publicação científica.


Em conclusão, a leitura de artigos científicos é uma prática que evolui com sua realização constante e com a aquisição de experiência. No entanto, diferencia-se da leitura tradicional, pois requer uma avaliação muito mais crítica e técnica. Ao conhecer boas referências e as minúcias de cada um dos delineamentos de pesquisa, o estudo se torna mais produtivo e objetivo. Afinal, o objetivo final de todo nosso trabalho é ampliar os desfechos favoráveis e a qualidade de vida do nosso paciente, e a promoção da saúde. Nesse sentido, são grandes os benefícios na implementação correta de uma conduta baseada em evidência e do bom aproveitamento das inovações por meio da divulgação do conhecimento científico. 


OBS: Os autores do texto recomendam pausas para descanso, um ambiente tranquilo e um bom café durante a leitura. Aproveitem com moderação as indicações para aprender mais sobre pesquisa clínica publicadas em nosso instagram: @sammg.oficial 

 

Referências:

1- Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Juramento de Hipócrates [Internet]. São Paulo: CREMESP [Cited 2021 Abr 20]. Available from: https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3


2- Greenhalgh Trisha. Como ler artigos científicos: Fundamentos da medicina baseada em evidência. 5th rev. ed. e atual. Porto Alegre: Artmed; 2015. ISBN: 9781118800966.


3- Lopes A.A.. Medicina Baseada em Evidências: a arte de aplicar o conhecimento científico na prática clínica. Rev. Assoc. Med. Bras.  [Internet]. 2000  Sep [cited  2021  Apr  19] ;  46( 3 ): 285-288.


4- Guyatt Gordon, Rennie Drummond, Meade Maureen O., et al. Users‘ Guides to the Medical Literature: A Manual for Evidence-Based Clinical Practice. 3rd ed. United States of America: McGraw-Hill Education; 2015. ISBN: 978-0-07-179071-0.


5 - Rodriguez Natalia. Infographic: How to read a scientific paper. Elsevier Connect [Internet]. 2015 Aug 05 [cited 2021 Apr 20];10 Available from: https://www.elsevier.com/connect/infographic-how-to-read-a-scientific-paper


6 -  Shannon K M.Guide to Reading Academic Research Papers.Towards Data Science [Internet].2018 Jul [cited 2021 Apr 20]]. Available from:https://towardsdatascience.com/guide-to-reading-academic-research-papers-c69c21619de6


7 -  S. Keshav. How to Read a Paper.  David R. Cheriton School of Computer Science, University of Waterloo. Waterloo, ON, Canada.


8 - Bitran M,Zúñiga D, Leiva I. Reading Strategies used by Undergraduate Medical Students to Comprehend Scientific Publications.MEDICAL SCIENCE EDUCATOR The Journal of the International Association of Medical Science Educators Med Sci Educ 2012; 22(3S): 147-150


9 - Raff J.How to read and understand a scientific paper: a guide for non-scientists. The London school of economics and political science [Internet].2016 May [cited 2021 Apr 20]]. Available from: https://blogs.lse.ac.uk/impactofsocialsciences/2016/05/09/how-to-read-and-understand-a-scientific-paper-a-guide-for-non-scientists/


10 - Silva FE. A Avaliação Crítica da Literatura Médica como Instrumento de Complementação Educacional no Internato de Medicina. Rev. bras. educ. med.,  Brasília ,  v. 42, n. 1, p. 27-30,  Jan.2018. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-55022018000100027&lng=en&nrm=iso>. access on  20  Apr.  2021.  http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712018v42n1rb20160109.