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Resiliência: dos estímulos ambientais aos aspectos biológicos

Resiliência: dos estímulos ambientais aos aspectos biológicos

18/ABR/2022

Saúde

Hoje, a resiliência pode ser considerada como uma “soft skill”, ou seja, o modo com que o indivíduo lida consigo e com o outro em diferentes situações. Sendo assim, é uma habilidade de extrema importância nos diversos meios sociais, sobretudo no profissional. Para o acadêmico de medicina, um futuro trabalhador da saúde, essa habilidade se torna essencial para que haja uma boa resposta às adversidades e aos problemas que serão encontrados ao longo de sua carreira. Dessa forma, é necessário entender os aspectos que definem a resiliência tanto numa perspectiva neurobiológica quanto comportamental. É importante compreender os impactos decorrentes dessa competência quando não é bem desenvolvida no cotidiano das pessoas, sobretudo em relação ao estudante da área da saúde.

 

Nessa perspectiva, a resiliência é definida como um processo dinâmico e multifatorial que comporta a capacidade do indivíduo em se adaptar de modo positivo a uma situação adversa (1), denotando a desenvoltura dessas pessoas em retomar o funcionamento normal mesmo em condições estressantes. Com isso, esse fenótipo resiliente mantém os estados físico, psicológico e social saudáveis, sem grandes comprometimentos e desdobramentos negativos no seu cotidiano (2). Após uma análise histórica, o campo de estudo da resiliência foi altamente desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial, em que houve o estudo dos efeitos do trauma após experiências de guerra, sobretudo em crianças (3).  Ann Masten, professora do Instituto de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Minnesota, realizou um projeto de pesquisa com foco em crianças que experimentaram adversidades significativas e não desenvolveram resultados negativos. A partir disso, a ideia de que esse grupo era capaz de se adaptar a experiências traumáticas suscitou a busca por casos semelhantes e, posteriormente, os mecanismos envolvidos na adaptação positiva, o que abriu caminho para o ramo da ciência relacionado à resiliência (3).

 

Com isso, a área científica atribuída à resiliência apresenta como escopo a elucidação das vias biológicas bem como suas formas de funcionamento envolvidas nos processos de adaptação bem-sucedida às situações adversas, permitindo aos pesquisadores o esclarecimento do porquê alguns indivíduos se adaptam melhor do que outros. Para isso, é preciso considerar aspectos neurobiológicos, hormonais e genéticos associados ao fenótipo resiliente. No campo neural, deve-se abordar principalmente a norepinefrina (NE), o neuropeptídeo-Y (NPY) e o sistema nervoso autônomo simpático (SNAS) (4). Em situações de estresse e perigo iminente, o SNAS é hiperestimulado, o que provoca, por exemplo, aumento da liberação de NE. A NE atua em regiões encefálicas específicas relacionadas ao estado de alerta e de vigília, como o córtex pré-frontal e as amígdalas. Diante disso, indivíduos que apresentam um SNAS sensível ou que possuem liberação excessiva de norepinefrina frente aos estímulos negativos supracitados tendem a demonstrar reações comportamentais negativas de modo evidente, tais como episódios de ansiedade. Por outro lado, indivíduos capazes de ativar o SNAS, mas sem que essa ativação resulte em sintomas psicológicos, podem ser considerados indivíduos resilientes (4). Vale ressaltar que a resiliência também pode estar ligada a uma maior ativação do neuropeptídeo-Y, visto que uma das funções desse componente é conter a liberação de NE em estados de hiperatividade (4). Ademais, é preciso destacar alguns componentes hormonais envolvidos, como o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), o hormônio liberador de corticotrofina (CRH), o cortisol e a dehidroepiandrosterona (DHEA). O eixo HHA é responsável pela resposta ao estresse, uma vez que o hipotálamo libera o hormônio liberador de corticotrofina (CRH) que, por sua vez, estimula as células da hipófise a liberar o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). Esse componente hormonal atua nas adrenais e induz a produção de cortisol, um glicocorticóide de destaque na resposta ao estresse por meio da atuação no hipocampo, amígdala e córtex pré-frontal (4). Desse modo, diversos estudos demonstraram que a resiliência também está ligada à capacidade cerebral de regular as respostas induzidas por estresse mediadas pelo hormônio liberador de corticotrofina e pelo cortisol. Outro ponto importante é o mecanismo de atuação dos receptores CRH-1 e CRH-2, que estão concentrados, respectivamente, no hipocampo, amígdala basolateral e neocórtex e na rafe dorsal, núcleos mediais e corticais da amígdala. A sinalização CRH-1 é conhecida por desempenhar um papel no circuito ansiogênico e leva a respostas do tipo ansiedade, enquanto o CRH-2 controla os efeitos da sinalização do CRH-1 e pode ser ansiogênico ou ansiolítico (4). A dehidroepiandrosterona também possui papel importante na modulação resiliente, tendo em vista que um estudo evidenciou um maior aumento de DHEA ou razão DHEA-cortisol mais alta no sangue em soldados que apresentaram melhor desempenho sob estresse agudo, bem como uma superioridade física e psicológica (5). Por fim, deve-se destacar os componentes genéticos relacionados a essa habilidade: genes associados ao SNAS, como genes de receptores adrenérgicos; genes associados ao eixo HHA, com polimorfismos e haplótipos; e genes associados aos sistemas dopaminérgico e serotoninérgico. Dessa maneira, as interações entre a gama de compostos neurobiológicos, hormonais e genéticos junto aos estímulos ambientais são responsáveis pela modulação do fenótipo resiliente, o que interfere fortemente em suas ações, seus sentimentos, suas emoções e seus comportamentos frente a determinadas situações.

 

Outrossim, é válido pontuar a influência do meio na construção dessa habilidade. Para isso, as cinco barreiras mais comuns para a resiliência consistem em: um desequilíbrio entre trabalho e vida pessoal, exposição excessiva a eventos estressantes, tempo e espaço insuficientes para processar sentimentos negativos, experiências humilhantes e isolamento (6). O combate a esses obstáculos é a forma básica para intervenções eficazes tanto individuais quanto estruturais para desenvolver a resiliência. Os médicos Dr. Ken Ginsburg e Dr. Anthony Rostain, clínicos da Universidade da Pensilvânia que estudam os fatores desencadeantes do “burnout” em médicos, propõem o modelo dos “7 Cs” de resiliência, isto é, há 7 componentes integrais e interrelacionados que compõem a resiliência: competência, confiança, conexão, caráter, contribuição, enfrentamento e controle (6). A competência é a capacidade de saber lidar eficazmente com situações estressantes. A confiança é a crença nas próprias capacidades e está ligada à competência. A conexão consiste no estabelecimento de laços estreitos com familiares e amigos, o que gera uma sensação de pertencimento e reduz a busca por comportamentos autodestrutivos. O caráter promove forte senso de autoestima e melhora na confiança. A contribuição melhora a conexão, o caráter e a competência. O enfrentamento se relaciona a um amplo repertório de habilidades sociais de redução de estresse que torna o indivíduo capaz de superar eficazmente os desafios da vida. O controle, finalmente, sobre suas decisões e ações torna essas pessoas dotadas da sabedoria em realizar escolhas de forma que possam se recuperar das atividades do dia a dia de modo saudável (6).

 

Autor: Comissão de Ensino Médico da Sociedade de Acadêmicos de Medicina de Minas Gerais (SAMMG) - Hyan Bacelete

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

(1)    Cicchetti D. Resilience under conditions of extreme stress: a multilevel perspective. World Psychiatry. 2010;9(3):145-154. doi:10.1002/j.2051-5545.2010.tb00297.x. Acesso em 17 de fevereiro de 2022. Disponível em <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2948722/>.

(2)    Bonanno GA. Loss, trauma, and human resilience: Have we underestimated the human capacity to thrive after extremely aversive events? Psychological Trauma: Theory, Research, Practice and Policy 2008; 1(1): 101-113. Acesso em 17 de janeiro de 2022. Disponível em < https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/14736317/>.

(3)    Masten, A. S., Best, K. M., & Garmezy, N. (1990). Resilience and development: Contributions from the study of children who overcome adversity. Development and Psychopathology, 2(04), 425. doi:10.1017/s0954579400005812. Acesso em 17 de fevereiro de 2022. Disponível em <https://www.cambridge.org/core/journals/development-and-psychopathology/article/abs/resilience-and-development-contributions-from-the-study-of-children-who-overcome-adversity/9D84A6A2339F9B66E7B0B0D910F841CC>.

(4)    Hauger RL, Risbrough V, Oakley RH, Olivares-Reyes JA, Dautzenberg FM. Role of CRF receptor signaling in stress vulnerability, anxiety, and depression. Annals of the New York Academy of Sciences 2009; 1179: 120-143.

(5)    71.Morgan CA, 3rd, Southwick SM, Hazlett GA, et al. Relationships among plasma dehydroepiandrosterone sulfate and cortisol levels, symptoms of dissociation, and objective performance in humans exposed to acute stress. Archives of General Psychiatry 2004; 61(8): 819-825.

(6)    From Burnout to Well-Being: A Focus on Resilience > Mahmoud NN, Rothenberger D. From Burnout to Well-Being: A Focus on Resilience. Clin Colon Rectal Surg. 2019 Nov;32(6):415-423. doi: 10.1055/s-0039-1692710. Epub 2019 Aug 22. PMID: 31686993; PMCID: PMC6824889. Acesso em 17 de fevereiro de 2022. Disponível em <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31686993/>.